sábado, 15 de fevereiro de 2014

OS REQUINTADOS COGUMELOS E SUA RICA RELAÇÃO COM A HUMANIDADE


Paulo M. C. A. Teixeira
Resumo: Os cogumelos fazem parte de algumas das mais requintadas produções gastronômicas do mundo em que vivemos. São considerados pelos experts do ramo como sendo alimentos sofisticados, de sabores variados (conforme os tipos que estão sendo utilizados), e que, no geral, dão luxuosidade à culinária e grande prazer a quem os consome. Através desse artigo, realizado com base em pesquisa bibliográfica, procuramos traçar o perfil desse fungo tanto no tocante as suas características enquanto alimento quanto relativamente a sua história nas mesas da humanidade.

Palavras-chave: Cogumelo, Gastronomia, História, Alimentação, Ciência.

Abstract: Mushrooms are among the most refined gastronomical products in the world that we live. They are considered by the experts in this working area as one sophisticated food, with varied flavors (according to the kind of mushroom that is being used), and that, in general, are enabled to give luxury to the culinary arts and a great amount of pleasure to the ones that eat it. Through this article, realized with its basis on bibliographical research, we intend to show the characteristics of this fungus regarding its nature as a food as well as discover some of its history on the tables of humanity.

Keywords: Mushroom, Gastronomy, History, Alimentation, Science. 

Há exatamente quinze menções a cogumelos na mais respeitada referência de História da Gastronomia, o livro organizado por Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari (1998), editado no Brasil pela Estação Liberdade e que tem, apropriadamente, o título História da Alimentação.

Isso pode, a princípio, parecer pouco se pensarmos na dimensão e alcance desse alimento de linhagens nobres que seduz a humanidade desde os primeiros tempos. Entretanto, considerando-se o caráter relativamente seletivo ao qual é submetido esse fungo de características comestíveis, normalmente associado à mesa de comensais ricos e poderosos, entendemos porque podemos considerar bastante promissora a pesquisa inicial que fizemos nessa conceituada obra de Flandrin e Montanari.

Não estamos falando de um produto do cotidiano das pessoas, mas de uma iguaria especialmente requintada e desejada por aqueles que têm paladar refinado. Quando pensamos em cogumelos, nesse ensejo de luxuosidade associado ao consumo contemporâneo de suas conhecidas variedades, remetemos à idéia de que os primeiros a possuir esses finos alimentos em seus cardápios foram os gregos ou os romanos.

Diferentemente desse conhecimento que assumimos como verdadeiro, o uso de cogumelos na alimentação humana remonta aos hominídeos pré-históricos e as primeiras utilizações do fogo para o cozimento de certas plantas. Essa prática, anterior ao próprio domínio do fogo pelos homens, visava permitir a sobrevivência em tempos difíceis, de escassez de alimentos. O cozimento por sua vez, foi a alternativa encontrada para solucionar o problema das eventuais intoxicações e envenenamentos de alimentos consumidos em estado bruto.

Esses cuidados iniciais dos seres humanos em relação aos cogumelos são totalmente respaldados por pesquisas atuais que nos reportam a enormidade de tipos de fungos existentes no mundo. Calcula-se, por exemplo, que existam perto de oito mil espécies desses vegetais apenas nos continentes americano e europeu e, sabe-se que enquanto alguns constituem delicioso alimento, outros são venenosos e podem causar até mesmo a morte.

No entanto, não estão erradas as pessoas que imaginam os cogumelos como íntimos e quase sempre presentes nos grandes banquetes das civilizações da Antiguidade. Percebemos isso a partir do texto de Francis Joannès, A Função Social do Banquete nas primeiras civilizações (1998, p. 61), quando nos diz a referida autora que essas reuniões gastronômicas localizavam seus participantes de acordo com os grupos sociais a que pertenciam, requisitavam o conhecimento de certas regras de etiqueta (lavar-se com água, untar-se com óleos perfumados a base de cedros, zimbros e murtas), tinham uma ordem de serviço para os pratos previstos (com as carnes, pães e legumes seguidos de sobremesas compostas por frutas e bolos adocicados com mel) e que, “em alguns casos, produtos mais raros adornam a refeição: peixes de água doce, ovos de avestruz, cogumelos (trufas?), pistaches”.

Florence Dupont, por sua vez, em seu texto Gramática da alimentação e das refeições romanas, ressalta que os cogumelos eram produtos oriundos dos “confins”, ou seja, de florestas, pântanos e montanhas, espaços sem dono específico e não utilizados para a agricultura. Segundo a mesma autora, os romanos desconsideravam parte respeitável dos alimentos provenientes dessas reservas naturais por considerarem esses vegetais como alimentos para suas criações de animais. Entretanto, há as ressalvas feitas as herbae que poderiam ser utilizadas como remédios ou que eram consideradas como alimentos de luxo, “como os aspargos selvagens e os cogumelos”.

De acordo com Dupont esses “alimentos de luxo” recolhidos dos “confins” eram utilizados na tradicional Cena romana. A Cena era a refeição do prazer, do regalo e do supérfluo.  Essa reunião gastronômica estava restrita aos senhores de terras e escravos, aos senadores e oficiais do exército ou as pessoas que tivessem ganhado relativa fortuna com o comércio. Nesse ínterim, de acordo com o texto de Dupont (1998, p. 212):

“Mesmo o consumo dos ‘verdadeiros’ alimentos, aqueles que nutrem, é desvirtuado em função do prazer, seja pela sua abundância, seja pelo engenho com que são colhidos ou preparados – os legumes recolhidos na floresta, aspargos silvestres ou cogumelos, cozidos como carne”. 

Em A fava e a moréia: hierarquias sociais dos alimentos em Roma, Mireille Cobier (1998, p. 217) ressalta esse caráter elitista relativo ao consumo de determinadas iguarias, entre as quais os cogumelos:

“... um autor satírico como Marcial, no século I de nossa era, não hesita em utilizar os termos ‘rico’ e ‘pobre’, associando-os ao tipo de alimentação: no livro XIV de seus epigramas, ‘as doações dos ricos (diues) e do pobre (pauper)’ não incluem entre víveres entre os presentes de pouco valor ou, pelo contrário, de preços indicados, mas nele se vê um prato de servir cogumelos que se lamenta só ser usado para brócolis”.

 Percebe-se na ironia de Marcial a riqueza e o status conferido ao cogumelo apenas pela menção da não utilização de um prato destinado a esse fungo e que, como compensação, acabava sendo usado para acomodar o humilde e popularesco brócolis.

Até mesmo o mundo árabe demonstra historicamente a afeição ao consumo dos cucumellus, diminutivo de cucuma, termo originalmente grego que quer dizer “vaso de cozinha”, de acordo com os ensinamentos recolhidos do Pequeno Dicionário de Gastronomia de Maria Lúcia Gomensoro. A referência ao consumo de cogumelos no mundo islâmico aparece em artigo escrito por Bernard Rosenberger, A cozinha árabe e a sua contribuição à cozinha européia.

Em determinada passagem de seu texto, Rosenberger (1998, p. 350) destaca que entre os mouros “comem-se certos cogumelos, em particular trufas brancas e pretas, consideradas afrodisíacas” e que, essa característica potencial desses fungos levava os cogumelos a serem considerados “alimento de libertinos” e proibidos de venda nas proximidades das mesquitas.

Indo um pouco além no tempo e voltando ao contexto especificamente europeu, já na Baixa Idade Média (entre os séculos XII e XV), há o registro de consumo de cogumelos como complementação da alimentação familiar das pessoas que viviam nos feudos. No caso do feudalismo europeu o consumo de champignons (palavra francesa para cogumelos e também uma das mais conhecidas variedades da espécie) relaciona-se a pobreza, ao inverno, a falta de mercados e também as catástrofes climáticas que abalavam as estruturas produtivas arcaicas e empobrecidas dos camponeses europeus de então.

A entrada num novo período, mais afeito a novas idéias e vanguardista como a Idade Moderna trouxe para os cogumelos um novo papel na gastronomia. Trata-se de uma função já executada nos períodos anteriores se bem que de forma totalmente secundária, ou seja, a de reputado e saboroso condimento adicionado a outros alimentos. Nessa nova etapa o Funghi, como é chamado na Itália, passa a ser adicionado com grande regularidade a pratos que tem como ingrediente principal uma carne, uma massa, saladas ou algum tipo específico de cereal. As especiarias ganhavam o mundo e entre elas também singrava os mares, muito timidamente, os mushrooms (como são conhecidos na língua inglesa).

Na América os cogumelos não foram introduzidos pelos navegadores europeus, pelo contrário, já constituíam parte do cardápio das mais evoluídas civilizações, como os Astecas, que viviam na atual região do México. Há registros de utilização regular de cogumelos na preparação de um produto tipicamente americano que conquistou o mundo, o chocolate. Era praxe, inclusive, a utilização de edelpilz (cogumelo em alemão) alucinógenos nesses chocolates astecas.

Os tempos atuais permitiram a humanidade produzir e conservar os cogumelos (preferencialmente em óleo) e levaram a uma oferta muito maior desse verdadeiro alimento dos deuses. Contemporaneamente catalogados e pesquisados, esses fungos apresentam variedades como o cogumelo ostra, o shiitake, as trufas, o cogumelo castanha romano, o nameko, o cogumelo botão, a trufa branca, o cogumelo castanha suíço, o shiitake gourmet, o cogumelo plano, o enokitake, o porcini seco, o morel seco, os cogumelos palha e o cogumelo cantarelo como seus principais representantes nas mais importantes celebrações, mesas de família e restaurantes. Não há mais como dispensar esses fungos fascinantes (em suas variedades comestíveis) de nossas mesas e cardápios, tal ato constituiria, depois de todo o reconhecimento histórico a esse delicioso alimento, uma verdadeira heresia...



Referências
COGUMELOS – Guia Prático. São Paulo: Nobel, 1999.
CORBIER, Mireille. A fava e a moréia: hierarquias sociais dos alimentos em Roma. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
COX, Jill; WERLE, Loukie. Ingredientes. Colônia, Alemanha: Könemann Verlagsgesellschaft mbH, 2000.
DAVIDSON, Alan. The Oxford Companion to Food. Nova Iorque, EUA: Oxford University Press, 1999.
DUPONT, Florence. Gramática da alimentação e das refeições romanas. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
FLANDRIN, Jean-Louis. Tempero, cozinha e dietética nos séculos XIV, XV e XVI. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
GOMENSORO, Maria Lúcia. Pequeno Dicionário de Gastronomia. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
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LANG, Jennifer Harvey. The Larrouse Gastronomique. Nova Iorque, EUA: Crown Publishers Inc, 1998.
LEMPS, Alain Huetz. As bebidas coloniais e a rápida expansão do açúcar. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
RIELA-MELIS, Antoni. Sociedade Feudal e alimentação (séculos XII e XIII). In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.
ROSENBERGER, Bernard. A cozinha árabe e sua contribuição à cozinha européia. In: FLANDRIN, Jean-Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.